Friday, March 30, 2007

Brasiliando...

Há tanto tempo! Os chorinhos da Chiquinha Gonzaga com que me adormeciam sempre que uma amigdalite me atormentava...
Há tanto tempo! Aquelas canções, agora repescadas pelas telenovelas: Tá aí, Eu fiz tudo pra você gostar de mim...
Há tanto tempo! Era eu uma menina de escola quando passava as horas da minha solidão a ouvir os baiões do Ceará na voz de Luís Gonzaga...
Há tanto tempo! Acordava ao som de Eu tava na peneira, eu tava peneirando e de Olá mulé rendeira , olá mulé rendá, que eu eu iria "re-ouvir" em 2004 pelas vozes quentes e lentas das rendeiras do Ceará, numa praia perto de Fortaleza.
Há tanto tempo! A bossa nova. Tom Jobim, Vinicius, Chico Buarque, Ellis, Caetano, Betânia, Gall e mais e mais e mais...Toda a minha cultura musical se ancorou, principalmente, na música brasileira.

A terra e as pecularidades do Português do Brasil, fruto da fusão cultural e da tropicalidade, chegaram até mim pelas histórias que se contavam a propósito de uma tia, que havia vivido em Pernambuco, mas principalmente por via da música e da literatura.

Há cerca de 20 anos, fiz a primeira visita ao Rio de Janeiro. A música estava em tudo: nos olhares, no bater das ondas da praia de Copacabana, no andar das "garotas" de Ipanema, nas cores fortes das acácias, das brumélias, das boganvílias eou dos hibiscos. Que deslumbramento! Passeei pelo centro histórico. Andei na Rua do Ouvidor, visitei a Candelária, sempre acompanhada pelas palavras de Machado de Assis. Passei ao Municipal, olhei a Baía de Guanabara, andei no calçadão, fui ao Jardim Botânico... Atravessei a ponte e almocei em Niterói. Ainda pela mão de Machado "subi" a Petrópolis. Junto da Faculdade de Direito, pensei em Alencar. Só passados muitos anos, visitaria Fortaleza.
A segunda vez que estive no Rio de Janeiro, já foi uma visita pouco ou nada livresca. A beleza continuava,mas falava-se muito em violência, em assaltos em plena praia de Copacabana. Parecia impossível! " Ó Rita não deixes o boné!" "Ó Ana foge!" "Ai o meu chinelo!..."Não sei se foi uma tentativa de assalto, se foi o fim de um arrastão se foram os policiais que me quiseram proteger, a mim, turista incauta, de carteira aberta, a conversar com vendedor ambulante, (um galego de 72 anos que vivia no Brasil desde os vinte) pronta a receber o troco da compra de um modesto boné que a Rita havia comprado por seis reais.
Lá trazer o troco, eu trouxe, a Rita é que deixou o boné! O certo é que o susto - se o houve - passou e nós continuámos a passear, a fazer as compras, de noite nos camelôs, a frequentar as esplanadas, a beber água de coco nas barraquinhas da praia.
Nesta visita aprendi que a vida na Gávea, no Leblon ou na Barra passa pelo sofrimento daqueles que, ao escurecer, estendem, no chão, cartões para dormirem mesmo bem perto de condomínios fechados. A vida no Rio está também nos morros e nos olhos tristes das crianças que nos olham quando saímos do túnel, vindos do aeroporto. A vida no Rio esvai-se na Rocinha e em tantas outras favelas que, pelas condições a que estão sujeitas, geram ódios e violência.
E o Ceará? Parafraseando Gonzaga no Ceará não há disto não, não há disto não! Claro que fui ao Ceará, não pela mão de Alencar, mas guiados pela experiente Catarina. quisemos ver tudo. Percorremos quilómetros e quilómetros (algumas vezes à procura da entrada em Fortaleza!) Comparámos topónimos: "Olha Messejana! Há igual no Alentejo!" "Olha Cascavel! Também há no Paraná!" Andámos na praia (eu e a Catty). Foi andar até não aguentar mais para chegar ao parque eólico... O Lito quis trocar de carro no estacionamento do Iguatimi e os donos viram. Foi uma paródia que serviu para fixarmos o número do lugar: B12. Assim mesmo, como a vitamina. Passeámos nas dunas, escutámos a música que nos invade, misturada com os aromas vindos dos grelhados. Estivemos com as rendeiras (até elas terem toalhas e caminhos). Quase chorei com as canções dos poetas repentistas.Da cidade recordo as cores vivas do mercado, os passeios à beira mar. E as vezes que passámos pela Avenida Dummont, lembram-se? Que saudades! Hei-de voltar um dia, qualquer dia...
Nestas viagens desordenadas, deixei para o fim o Sul do Brasil. Deixei para o fim as araucárias que me enfeitiçaram ao ponto de ter comprado uma semelhante. Deixei para o fim O Paraná e Santa Catarina.
A minha primeira viagem ao Paraná foi marcada pela aventura vivida nas Cataratas de Iguaçu. Perante o I (água) Guaçu (grande) e o vais não vais que se rebolava dentro de mim, eu lá fui ... Só nunca cheguei a entender a reazão pela qual alguns companheiros de viagem soltavam estridentes gargalhadas sempre que o frágil barquinho se enterrava nos fundões do rio, enquanto eu, pequenina, quase sufocava com a força da massa líquida que se despenhava abruptamente sobre nós. Bendito macuco! Conseguiste que eu superasse os meus medos!
Do Paraná revivo, ainda, a Serra do Mar, enfeitada de hortências,brumélias e orquídeas; a Mata Atlântica e a sinfonia de verdes que guardo nos meus sentidos; a viagem a Morretes, o barriado e Maria Fumaça e sempre, mas sempre a beleza exótica do verde escuro das araucárias que nos estendem os braços: E Curitiba? Diferente: acolhedora sem exuberância, calma sem monotonia, culta sem pretensão, nobre sem vaidade. Diferente.
Apenas uma pincelada num quadro solto, mas agarrado ao meu olhar: Santa Catarina: a lagoa, as praias e Florianópolis, a candidata a rival do Rio de Janeiro.
Se eu algum dia fugir, já sabem onde me procurar (por ordem alfabética): Ceará, Floripa, Maputo, Rio de Janeiro e Carvalhal do Norte. Já agora também em Gambelas do Sul, sempre tem jacarandás e Acácias.

Thursday, March 29, 2007

Talvez amanhã...

Oiço Zeca Afonso.
Regresso ao passado em que, para mim, o melhor lugar era aquele em que eu não estava.
Há tempos assim. Há dias assim. Tudo é efémero: tudo passa, mas contraditoriamente tudo volta.
O Zeca diz que o «vento é meu amigo também», mas este vento não é meu amigo. Gela e fustiga mesmo as mais belas flores. Olho em frente e pouco vejo. O vento tudo arrasta e o frio pode secar as flores.
Recebo um mail. Sorrio. De facto, «qualquer um poderia ficar triste e desmotivado». Só tu para, na hora certa, te lembrares de me enviar a mensagem certa.
Há horas em que não é fácil lutar contra o tempo. Há minutos que duram horas incertas. Será que o tempo parou e eu não percebi?
Não!
Os meus gatinhos ainda olham
para mim e provocam as minhas brincadeiras.
Não!
Há de novo glicínias em flor e o jasmim é, cada dia, mais branco e cheiroso. Apesar do vento...
Amanhã talvez não sopre o vento nem o frio gele. Talvez... também eu vá «num barco à vela (...) cantando e dançando»...

Monday, March 26, 2007

Comparando...



Maputo e Nilo são irmãos africanos.
Do Nilo sabemos lendas e mitos.
Do Maputo conhecemos as suas gentes, a doçura do seu olhar, o riso das crianças.
No Nilo vive-se talvez ainda o estava escrito.
No Maputo luta-se com a esperança na voz e nas cores, apesar da dureza dos elementos e dos fantasmas da guerra que teimam em espalhar destruição.
Maputo e Nilo são meus irmãos.
A pureza dos olhares e a portugalidade que habita na linguagem do povo moçambicano atraem-me mais que os olhos tristes e profundos do povo egípcio.
Maputo e Nilo são meus irmãos.
As cores vivas e quentes dos trajes das mulheres e a luz do pôr do sol são mais fortes que a atracção que em mim exercem as pirâmides.
Junto ao Maputo fui menina-mulher durante alguns meses e revisitei-o, já mulher-menina, durante alguns dias.
Junto ao Nilo a mulher conseguiu tornar viva toda a milenar história que aprendera em menina.
O Nilo deu aos grandes uma história grandiosa, apesar de triste e sofrida.
Maputo está a construir uma obra para as mulheres e homens moçambicanos.
Amo o Nilo pelo seu passado que me esmaga. Temo o seu futuro.
Amo Maputo pelo presente. Quero (e creio) a (na) construção do seu futuro.

Sunday, March 25, 2007

Vitória do Nilo

O Nilo ganhou ao Oceano.
Olhar o mar já não me atrái.
O mar nunca foi deus!
O mar separa.
O Nilo ...
Une os homens ao deserto.
O mar destrói a terra.
O Nilo...
fecunda-a

Nilo Revisitado

Revisito-te...
águas calmas, margens verdes
guardando segredos...
No teu leito repousam
divindades esquecidas,
segredos de milénios,
ódios e guerras sepultados.
Cada faluca que te corta
revive um sonho cálido
de Osíris, de Rá ou de Ísis...
Indiferente à profanação que te fizeram
abençoas a terra
que se desventra em verde...

O Nilo desafia-me

O Nilo desafia. O deserto deprime e esmaga.
Em cada palmeira há um deus
que me contempla.
recuo no tempo.
Revejo todas as dinastias faraónicas.
Deambulo no passeio dos carneiros sagrados
de Karnac a Luxor.
Subo ao vale dos Reis.
Revejo Tebas.
O deserto deprime-me.
O deserto esmaga-me.
Regresso ao Nilo.
O Nilo desafia-me.

Juntos no Nilo

Navego nas águas sagradas do Nilo.
Não sou eu!
Revejo Aton banhando-se, Rá iluminando o Mundo...
Sinto que Bá se evola lentamente
buscando o Falcão sagrado
que se esconde.
Numa palmeira pousa Ibis que me olha. Baixo o meu olhar para o Nilo.
Perscruto o seu mistério.
Uma lenta melodia enche o espaço
e apodera-se d0 que não sou eu.
Agora é Hatshepsut que me fita...
Das águas sai um perfume que me embala.
Pudesse eu compreender a harmonia do Universo
e reviver os mistérios de Amon-Rá!...

Saturday, March 24, 2007

Aprendi a amar Moçambique




Cinquenta anos é muito tempo! Como iria encontrar a África que me fascinou, mas onde não gostei de viver? Um medo profundo, misturado com uma melancolia de uma juventude, que se escondeu em muitas alegrias e algumas (poucas) tristezas, faziam adiar uma viagem que, tacitamente, havia prometido ao sol (o) africano, às suas cores fortes tão bem traduzidas na tela por Chichorro, Malangatana ou pelos pintores populares.
Aconteceu! Lá ia eu, mulher com alma de menina, à la recherche du temps, que não foi perdido, nem inteiramente vivido há cinquenta anos atrás.
No avião, li crónicas de viagens que me refrescaram todos os sentidos. Recordei o batuque com que nos brindaram na primeira ou segunda noite, lembrei as canções ouvidas na missa numa missão distante, revivi a cor das acácias rubras (que não são bem iguais às brasileiras nem às cubanas), senti o cheiro forte das queimadas que, curiosamente, encontrei aqui, onde a Europa acaba e África começa. Recordei as massalas e os cajueiros frondosos, os chiricos e os seus ninhos, as viuvinhas negras com as longas caudas, as garças, as ruas perpendiculares da cidade grande, as praias, as longas solidões de uma criança grande, os grandes olhos dos bebés, presos pelas capulanas das mães, meias assustadas quando eu não resistia a acariciá-las.
Quando a viagem acabou, eu já havia traçado o meu plano. Iria reconciliar-me com tanta beleza que, em tempos, não havia sabido ver, ouvir, sentir, cheirar, porque a forma fútil de viver, que me rodeava, era avessa à pureza da vida africana.
Cheguei de noite a Maputo. Quis localizar todas as ruas que ligam Mavalane à zona da Catedral, onde fica o Hotel. Impossível. Queria ver e sentir tudo ao mesmo tempo e em minutos. Acalmei a minha ansiedade. Vamos esperar por amanhã.
Ao amanhã seguiu-se outro amanhã e outro e outro, durante duas semanas inesquecíveis.
Fui ao palmar. Menos coqueiros, não há macacos, mas está lá a baía e, ao fundo, tal como há cinquenta anos, a mancha verde da Catembe.
Fui à praia da Polana, olhei a Ponta Vermelha, passei por Sommerchild, mas o que eu queria mesmo era saudar o cais da duzenta, os Caminhos de Ferro, o bazar com os seus cheiros e cores, a baixa e os seus dois cafés rivais (o Continental e o Scala) o Rádio Club de Moçambique, a Câmara, a Catedral, O Jardim (outrora Vasco da Gama) aqueles velhos edifícios déco e… as acácias. Tudo lá estava, intacto, parado…
De vez em quando, apetecia-me perguntar a alguém se conhecia o meu velho amigo Jossias Mabunda que, num gesto de gratidão, tomou, em tempos, o nosso nome: Marques da Silva. Meu velho Manel! Onde estarás?
Pisei todas as ruas, descobrindo aqui e ali os locais que, durante os escassos dezassete meses, eu havia visitado. Porém, sempre que entrava na marginal, os meus olhos caiam nas sombras verdes da Catembe, imaginando como estaria aquela quase penínisula. Ainda haveria o restaurante da D. Rita? E o hotel, que havia reservado, seria o velho Sebastião? E o barco ainda teria o velho marinheiro que obedecia à ordem: Larga, larga cocoana!
Finalmente, entrei no ferry ao som de cantigas entoadas por mulheres que dançavam alegremente. Convidaram-nos para as acompanhar, deixaram fotografar-se. Acariciei um bebé que a mãe trazia preso na capulana, mas agora a mãe não estava assustada. Todo o barco deixava transparecer um clima de paz e de confiança que nunca vira há cinquenta anos. Desembarcámos finalmente. Muita cor, muito barulho, muitos botequins onde tudo se vende, desde a coca-cola aos telemóveis.
A custo consegui saber que ali havia sido o restaurante do Sebastião - famoso pelos seus camarões -, agora uma espécie de museu de arte africana e de documentos alusivos ao início da independência.
A calma baía embalava a cidade de Maputo. Desci à praia. Queria saber onde seria o aquartelamento. Não é longe, dizia. Eu vim a pé. Amanhã vamos lá.
E fomos. E fomos E fomos…Vi as massalas e os cajueiros frondosos, os chiricos e os seus ninhos, as viuvinhas negras e vermelhas com as longas caudas, as garças, as longas solidões de uma criança grande, os grandes olhos dos bebés. Ajudámos a empurrar uma embarcação para o mar, vi uma cerimónia religiosa. Talvez um rito iniciático, talvez um batizado - segundo me disseram. Brinquei com a Jessica e com o Nico, apanhei conchas e búzios. Fui feliz! Três horas de caminhada, debaixo de um sol escaldante. Olha o mangal! Ainda não é este! Ollha a foz do ribeiro! Ainda não é esta! Olha o bananal da machamba! Ainda não é este! É aqui! Escarpa acima, chegámos ao quartel onde fomos recebidos pelo capitão. Poucas fotos: o passarinheiro onde eu alimentava a minha solidão de menina de vinte anos; olhei o que restava da sala de jantar da messe de oficiais, onde me diverti com um macaquito que sempre me acompanhava e reconheci a entrada de uma vivenda que iríamos habitar se não tivéssemos querido sair do vazio para uma vida que pensávamos diferente.
A Beira que me perdoe, mas ainda não foi desta. Voltei a Maputo. Desta vez, quis conversar. Quis ouvir e ver como vivem, o que sonham. Mamã compra isto ao teu menino que ele quer ser médico. E noutro dia o Carlitos diz: Papá, a Mamã quer comprar esta caixa!
É um País feliz, apesar dos revezes a que tem sido sujeito. Não há ressentimentos contra os Portugueses. A primeira, mas mesmo a primeira preocupação de todos é a educação. Tantas escolas! Tantos meninos e meninas! Tantas dependências da UP (Universidade Pedagógica). Não há atropelos à Língua Portuguesa. Nem na Televisão…
Eu gostaria de ficar aqui! – Disse um dia. E gostava mesmo. Os trópicos atraem-me e eu amo Maputo.

Estas recordações foram brutalmente interrompidas pela notícia do rebentamento do paiol. Vejo as imagens na televisão e penso nas crianças que vi correr em bandos chilreantes na manhã em que deixei Maputo e que hoje sofrem e agonizam no Hospital Central. Para elas, não há mais escola nem cantigas, nem brincadeiras. Para elas, o fantasma da guerra desceu à rua para lhes roubar os seus sorrisos lindos. Para as mães e pais, a angústia e a revolta invade-os e talvez lhes roube a calma limpidez do seu olhar e a doçura da sua voz. Maputo não merece mais dor…