Saturday, March 24, 2007

Aprendi a amar Moçambique




Cinquenta anos é muito tempo! Como iria encontrar a África que me fascinou, mas onde não gostei de viver? Um medo profundo, misturado com uma melancolia de uma juventude, que se escondeu em muitas alegrias e algumas (poucas) tristezas, faziam adiar uma viagem que, tacitamente, havia prometido ao sol (o) africano, às suas cores fortes tão bem traduzidas na tela por Chichorro, Malangatana ou pelos pintores populares.
Aconteceu! Lá ia eu, mulher com alma de menina, à la recherche du temps, que não foi perdido, nem inteiramente vivido há cinquenta anos atrás.
No avião, li crónicas de viagens que me refrescaram todos os sentidos. Recordei o batuque com que nos brindaram na primeira ou segunda noite, lembrei as canções ouvidas na missa numa missão distante, revivi a cor das acácias rubras (que não são bem iguais às brasileiras nem às cubanas), senti o cheiro forte das queimadas que, curiosamente, encontrei aqui, onde a Europa acaba e África começa. Recordei as massalas e os cajueiros frondosos, os chiricos e os seus ninhos, as viuvinhas negras com as longas caudas, as garças, as ruas perpendiculares da cidade grande, as praias, as longas solidões de uma criança grande, os grandes olhos dos bebés, presos pelas capulanas das mães, meias assustadas quando eu não resistia a acariciá-las.
Quando a viagem acabou, eu já havia traçado o meu plano. Iria reconciliar-me com tanta beleza que, em tempos, não havia sabido ver, ouvir, sentir, cheirar, porque a forma fútil de viver, que me rodeava, era avessa à pureza da vida africana.
Cheguei de noite a Maputo. Quis localizar todas as ruas que ligam Mavalane à zona da Catedral, onde fica o Hotel. Impossível. Queria ver e sentir tudo ao mesmo tempo e em minutos. Acalmei a minha ansiedade. Vamos esperar por amanhã.
Ao amanhã seguiu-se outro amanhã e outro e outro, durante duas semanas inesquecíveis.
Fui ao palmar. Menos coqueiros, não há macacos, mas está lá a baía e, ao fundo, tal como há cinquenta anos, a mancha verde da Catembe.
Fui à praia da Polana, olhei a Ponta Vermelha, passei por Sommerchild, mas o que eu queria mesmo era saudar o cais da duzenta, os Caminhos de Ferro, o bazar com os seus cheiros e cores, a baixa e os seus dois cafés rivais (o Continental e o Scala) o Rádio Club de Moçambique, a Câmara, a Catedral, O Jardim (outrora Vasco da Gama) aqueles velhos edifícios déco e… as acácias. Tudo lá estava, intacto, parado…
De vez em quando, apetecia-me perguntar a alguém se conhecia o meu velho amigo Jossias Mabunda que, num gesto de gratidão, tomou, em tempos, o nosso nome: Marques da Silva. Meu velho Manel! Onde estarás?
Pisei todas as ruas, descobrindo aqui e ali os locais que, durante os escassos dezassete meses, eu havia visitado. Porém, sempre que entrava na marginal, os meus olhos caiam nas sombras verdes da Catembe, imaginando como estaria aquela quase penínisula. Ainda haveria o restaurante da D. Rita? E o hotel, que havia reservado, seria o velho Sebastião? E o barco ainda teria o velho marinheiro que obedecia à ordem: Larga, larga cocoana!
Finalmente, entrei no ferry ao som de cantigas entoadas por mulheres que dançavam alegremente. Convidaram-nos para as acompanhar, deixaram fotografar-se. Acariciei um bebé que a mãe trazia preso na capulana, mas agora a mãe não estava assustada. Todo o barco deixava transparecer um clima de paz e de confiança que nunca vira há cinquenta anos. Desembarcámos finalmente. Muita cor, muito barulho, muitos botequins onde tudo se vende, desde a coca-cola aos telemóveis.
A custo consegui saber que ali havia sido o restaurante do Sebastião - famoso pelos seus camarões -, agora uma espécie de museu de arte africana e de documentos alusivos ao início da independência.
A calma baía embalava a cidade de Maputo. Desci à praia. Queria saber onde seria o aquartelamento. Não é longe, dizia. Eu vim a pé. Amanhã vamos lá.
E fomos. E fomos E fomos…Vi as massalas e os cajueiros frondosos, os chiricos e os seus ninhos, as viuvinhas negras e vermelhas com as longas caudas, as garças, as longas solidões de uma criança grande, os grandes olhos dos bebés. Ajudámos a empurrar uma embarcação para o mar, vi uma cerimónia religiosa. Talvez um rito iniciático, talvez um batizado - segundo me disseram. Brinquei com a Jessica e com o Nico, apanhei conchas e búzios. Fui feliz! Três horas de caminhada, debaixo de um sol escaldante. Olha o mangal! Ainda não é este! Ollha a foz do ribeiro! Ainda não é esta! Olha o bananal da machamba! Ainda não é este! É aqui! Escarpa acima, chegámos ao quartel onde fomos recebidos pelo capitão. Poucas fotos: o passarinheiro onde eu alimentava a minha solidão de menina de vinte anos; olhei o que restava da sala de jantar da messe de oficiais, onde me diverti com um macaquito que sempre me acompanhava e reconheci a entrada de uma vivenda que iríamos habitar se não tivéssemos querido sair do vazio para uma vida que pensávamos diferente.
A Beira que me perdoe, mas ainda não foi desta. Voltei a Maputo. Desta vez, quis conversar. Quis ouvir e ver como vivem, o que sonham. Mamã compra isto ao teu menino que ele quer ser médico. E noutro dia o Carlitos diz: Papá, a Mamã quer comprar esta caixa!
É um País feliz, apesar dos revezes a que tem sido sujeito. Não há ressentimentos contra os Portugueses. A primeira, mas mesmo a primeira preocupação de todos é a educação. Tantas escolas! Tantos meninos e meninas! Tantas dependências da UP (Universidade Pedagógica). Não há atropelos à Língua Portuguesa. Nem na Televisão…
Eu gostaria de ficar aqui! – Disse um dia. E gostava mesmo. Os trópicos atraem-me e eu amo Maputo.

Estas recordações foram brutalmente interrompidas pela notícia do rebentamento do paiol. Vejo as imagens na televisão e penso nas crianças que vi correr em bandos chilreantes na manhã em que deixei Maputo e que hoje sofrem e agonizam no Hospital Central. Para elas, não há mais escola nem cantigas, nem brincadeiras. Para elas, o fantasma da guerra desceu à rua para lhes roubar os seus sorrisos lindos. Para as mães e pais, a angústia e a revolta invade-os e talvez lhes roube a calma limpidez do seu olhar e a doçura da sua voz. Maputo não merece mais dor…

2 comments:

lito said...

Lá nos amámos agora e há cinquenta anos. Lá vivemos agora momentos bem cheios de amor. Lá vivemos há cinquenta anos momentos bem cheios de expectativas que não sairam frustradas.


Lito

Nidia said...

querida amiga...hace unos días que me decía: tengo que leer a celeste...
y ahora entré y encontré esta delicia...
no entiendo todo...pero el traductor cambia el sentido...yo comprendo que dos veces fuiste a un lugar...un lugar que conociste hace muchos años y un lugar al que retornaste con los recuerdos intactos...como son los recuerdos de la vida sólo cuándo se la vive intensamente y siempre amando...
gracias amiga querida...
yo no sé por qué...pero siento nostalgia como si fuera esto un Déjà vu...con ese sobrecogimiento tan especial de algo familiar...como ya vivido...
te quiero amiga...
nidia